
Por volta das 3h o sono não veio. Uma inspiração rasgava meu peito, em forma de angustia, melancolia, qualquer coisa. Então:
“Eu não tive infância frustrada, tampouco fui molestada pelo meu pai. Tive a típica e clichê. Uma bela torta de felicidade coberta com casca cruciante de proteção. Pode ter sido a melhor infância, a melhor mãe, o melhor pai, a melhor tia, o melhor cachorro, papagaio periquito, ar, escola, brinquedo, um enorme mundo de fantasia e grande perfeição, o melhor avô. Sim, o melhor avô por que não?
Não me lembro de ter amigos, se os tinha eram poucos. Estava sempre solitária e pelos cantos, na escola, com meu caderno, com minha boneca, enquanto menor. Não vi isso Como defeito, não era algo que repudiasse, mas também não era algo que eu amasse, Me sentia rejeitada pelas outras crianças, mas ao mesmo tempo, sempre me senti superior as outras meninas da minha idade. Não sei bem porque, se era uma defesa para a rejeição,Ou se era um fato, ate hoje costumo me isolar, e de certo modo subestimo minha inteligência, ou ainda me sinto superior por algum motivo, ou simplesmente sou diferente o suficiente para manter-me afastada. Posso ter algum problema de comunicação que me afasta das pessoas, ou eu goste de deixa-las distante para que não me conheçam verdadeiramente.
Lembro-me perfeitamente quando acordei naquela manhã de junho. Recebi a minha primeira má noticia. O palácio da torta deliciosa perdeu o brilho e despencou no chão. Deixou subir uma poeira e pequenas faíscas de felicidade perdida. Chão... Que chão? Abriu uma cratera gigantesca, um vulcão queria explodir, vomitar suas lavas em meio ao nada e ao tudo, um vulcão enorme e devastador, vomitava sua triste noticia para ninguém. Eu era esse vulcão. A manhã era escura, a mais escura que eu havia presenciado. Chovia um pouco e tinha cheiro de crisântemos brancos, misturado com saudade e perda de algum órgão. A sensação que eu tinha é que alguém havia me tirado o coração, dissecado e pendurado no teto da sala de jantar.
A manhã era morna, nem quente nem fria, era morna e nos meus lábios as lagrimas deixavam inexoravelmente um gosto prolixo de cloreto de sódio. Minhas narinas podiam capturar esse cheiro e ainda mais odores distintos entre todos os odores que eu sentia desajustada enquanto recebia a noticia. Não me lembro de ter chorado, mas o gosto encarnava em meus lábios, sinal de que eu havia chorado. Aquela manhã triste me deixou um pouco reflexiva e o vulcão que embora por um momento parecia estar necessitando entrar em erupção, adormeceu. Tomando uma postura surpreendente, que hoje quando lembro dessa reação me sinto perplexa com essa crosta “anti-sofreguidão” que me envolveu. A reação pós-susto de sofrimento se transformou em uma reação de ignorar os fatos. Tal reação que era de distancia, desprezar ocorrido para que não tivesse que chorar, evitando lagrimas renitentes.
Nas próximas 20 linhas de pensamentos, vaguei por qualquer lugar que não me lembro, em uma balsa invisível. Uma caneta, um diário e centenas de letras, palavras, pensamentos, sonhos, medos, anseios. Uma criança de 11 anos acabara de morrer, sendo enterrada ao lado do imperador de suas lembranças, o rei que habitava o belo castelo de felicidade. Ela não conhecia a morte. Percebeu então, que precisavam se conhecer e serem amigas, para que a morte não tirasse mais nada de sua posse. Então escreveu:
- Amiga morte, já que não pode devolver meu avô, peço que me leve para vê-lo vez ou outra. Eu quero te encontrar, morte. Eu quero poder saber o sentido que te trouxe ate mim.
Não teria sentido algum uma criança de 11 anos pedir a morte para serem amigas. Imaginava em sua visão surreal infantil que esta era um ser, um quase humano. Meio homem, meio deus. Essa criança, eu, estava emagrecendo e comendo mal e quase que não bebendo água. Estava marcando seu encontro com a morte.
Num sábado qualquer do mês de junho, um garoto de cabelos dourados andava de skate com os amigos e um deles gritou: “eu sou a morte”.Para ela aquilo era um sinal, o garoto esparramou pelo chão, numa queda horrorosa, caiu como um saco de batatas, os olhos dos outros meninos brilhavam e espantaram-se todos com a queda parando em circulo. O garoto de cabelos dourados estava atirado no chão, rindo e assustado ao mesmo tempo. Os outros meninos seguiram. Ele olhou a menina pequena de olhar comprido e cabelos longos. Levantou e seguiu em minha direção, limpando toda sujeira e o sangue dos braços machucados. Eu me assustei ao ver aquele menino sangrando em minha frente. Não hesitei em ajudá-lo. Ficamos em silencio, ate o momento que ele perguntou sobre o que eu escrevia. Respondi com segurança que quando crescesse seria escritora e publicaria quando famosa meus relatos da infância. Ele sorriu, sorriso de dor e esperança. Tirou a mecha de cabelo dos olhos e continuou suas perguntas. Por algum tempo aquele garoto seria meu amigo seria o encontro com a morte, um amor platônico e um amor real, o primeiro, trágico e belo. Como uma grande historia de amor. Porem essa seria curta, porque a morte estava impregnando suas vestes, suas mãos, seu olhar, sua vida. Mais um encontro com a morte, mas ainda houve momentos de alegria.
Primeiro comemorei 12 anos, não houve festa. Foi meu primeiro aniversario sem festa. Ele tinha 16 anos e me tratava com carinho, ficamos amigos, mas eu sentia vontade de beijá-lo às vezes. Por longos meses ele foi meu amor platônico, ate que demonstrou que também gostava de mim e foi meu primeiro beijo oficial, porque o "primeiríssimo”, bom, esse ainda não me sinto no direito de falar. Quem sabe em uma outra historia.
Foi nessa época que eu me tornei um pouco rebelde, “nada de sapatilhas”, essa foi a frase que mais me arrependi em dizer. Foi essencial para a minha formação, ou não. Nunca conseguia terminar nada que construía. Abandonei o balé, o jazz, ate a minha 6° série. Bom, a fase dos 13 anos. Sabe como é? Assisti aquela longa metragem, traduzido para o Brasil como “aos 13”. Bom, assisti para saber se eu me encaixava naquilo e surpresa! No é que aquela historinha chula de garotinhas fúteis tem lá seu fundo de verdade. Tudo bem que naquele filme chega a ser exagerado e até extremamente fútil, não que não seja fútil (risos). Bom, eu nunca fui muito de ser influenciada, eu sempre fui de influenciar. Crianças bobas, tabaréu, certinhas, caiam em minhas historias mirabolantes, algumas reais, outras da minha imaginação fértil. Contei a todas as minhas amigas que havia transado com Lucas (o garoto loiro), mas ele morreu e não chegamos a ter atividade sexual, eu morria de medo de perder a virgindade. E 13 anos, não era uma idade legal pra isso. Com a morte dele, eu fiquei um pouco desorientada e acabei perdendo a virgindade de forma trágica. Sim, bem trágica. Depois disso, enlouqueci. Nada de escola, nada de viver, mistura de emoções. Pessoas, medo, desespero. Minha vida parecia ter acabado, dramático: aos 13 anos.
Depois disso, eu assinei um contrato com a morte. Parece que deu certo, pois ela foi bem caridosa comigo nos seguintes dois anos. Eu não conseguia me relacionar com as pessoas, principalmente com os garotos. Como havia dito, me relacionei de forma perturbada. Estava aflita, perdida, fora de mim. Joguei-me de cabeça em um mundo que não era meu, em uma personalidade que não era minha. Com pessoas que se pareciam comigo, que eram atores nesse palco que é o mundo. Algumas pessoas que queriam meu bem, outras que queriam me foder, essas mais do que as de bem. Tive alguns problemas de taquicardia, síndrome de pânico, transtorno bipolar, ansiedade. Acho que chegaria à beira da loucura se não tivesse tido uma criação tão impecável.
Festas, bebidas, pedófilos. Era tudo confuso para alguém jovem e fodida pela vida, que alias, eu achava que era a mais sofredora do mundo. Isso me tornava um lixo diante de todos. Eu sempre me inferiorizava, auto flagelava, mentia pra mim e para os outros, me joguei em um mundo que não teria volta, se eu não tivesse sido tão sincera com a morte.
Eu me apaixonei aos 15 anos, tive clareza, depois de 20 anos, que eu estava apaixonada naquela época. Não foi a morte que nos separou. Poderia ela indiretamente, mas isso deixa para outra historia. Senão, com quais argumentos prenderei a sua atenção? Meu alterego, minha verdade silenciosa, minha mentira compactada, minhas sementes dissecadas. Tudo em um grande reflexo de eus falsos, milhares de eus fictícios, dentro de um eu verdadeiro e um verdadeiro eu escondido em qualquer lugar, perdido, encontrado. Sem manifestar-se.”
Terminando por onde comecei, refleti sobre a minha grandiosidade. Sim, todos nós temos algo verdadeiramente significante em nós. Eu não quero morrer nesse quarto escuro, com idéias jamais praticadas, olhando pela janela com vista para lugar nenhum. Eu sinceramente, quero ver o mundo, quero que o mundo me veja, nos palcos e nas paginas, nas telas. Eu tenho muito para mostrar, não quero morrer solitária e anônima. Não quero ser mais um ser, desejo ser.
Ela então... emerge em sua arte, aflora pensamentos, ações e palavras.










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